2 de abril de 2010

Noturno [3]

O comandante Redfern ficou observando a luz arroxeada brilhar  sobre sua pele.

- Se vocês acham que conseguirão descobrir o que aconteceu, eu posso servir de cobaia.

Eph balançou a cabeça, agradecendo.

- Quando você ganhou essa cicatriz? - perguntou Nora.

- Que cicatriz?

Ela estava olhando para a garganta do piloto, que inclinou a cabeça um pouco para trás a fim de que ela pudesse tocar a fina linha azulada sob a lanterna Luma.

- Parece quase uma incisão cirúrgica - disse Nora.

Redfern alisou a garganta.

- Não sinto coisa alguma aqui.

Na verdade, quando Nora apagava a lanterna a linha ficava quase invisível. Ela acendeu a luz novamente, e Eph examinou a cicatriz. Tinha talvez um centímetro e meio de comprimento, com poucos milímetros de largura. O tecido que brotara sobre o ferimento parecia bem recente.

- Mais tarde vamos tirar chapas. A ressonância magnética deve nos mostrar alguma coisa.

Redfern balançou a cabeça, e Nora desligou a lanterna.

- Você sabem ... há mais uma coisa aqui. - Redfern hesitou, com a confiança de piloto aéreo momentaneamente enfraquecida. - Eu me lembro de alguma coisa, mas acho que para vocês não vai adiantar …

Eph deu de ombros quase imperceptivelmente.

- Nós vamos aceitar qualquer coisa que você puder nos dar.

- Bem, quando eu apaguei... sonhei com uma coisa ... uma coisa muito antiga. - O comandante olhou em torno, quase envergonhado, e depois recomeçou a falar com voz bem baixa. - Quando eu era criança ... à noite ... sempre dormia numa cama grande na casa da minha avó. E toda meia-noite, enquanto os sinos badalavam na igreja próxima, eu costumava ver uma coisa sair de trás de um grande armário antigo. Toda noite, sem falta, a coisa esticava a cabeça negra, os braços compridos e os ombros ossudos ... e ficava me encarando.

- Encarando? - perguntou Eph.

- A coisa tinha uma boca serrilhada, com lábios finos e pretos ... ficava só me olhando ... e sorrindo.

Eph e Nora estavam transfixados. Tanto a intimidade quanto a atmosfera sonhadora daquela confissão eram inesperadas.

- Então eu começava a gritar. Minha avó acendia a luz e me levava para sua cama. Isso durou um ano. Eu chamava a coisa de Sanguessuga. Porque sua pele ... aquela pele negra ... parecia exatamente a das sanguessugas gordas que nós costumávamos pegar num riacho próximo.

Alguns psiquiatras infantis me examinaram e conversaram comigo. Falaram que era um caso de "terror noturno" e deram várias razões para que eu não acreditasse no Sanguessuga, mas ... toda noite ele voltava. Toda noite eu mergulhava debaixo dos meus travesseiros para me esconder dele, mas era inútil. Eu sabia que ele estava lá, no quarto.

Redfern deu um sorriso forçado.

- Nós nos mudamos alguns anos mais tarde. Minha avó vendeu o armário e eu nunca mais vi aquilo. Nunca mais sonhei com o Sanguessuga.

Eph ouvira com atenção.

- Vai me desculpar, comandante ... mas o que isso tem a ver com …

- Vou chegar lá - disse ele. - A única coisa que recordo entre a nossa descida e a hora em que despertei aqui ... é que ele voltou. Nos meus sonhos. Eu vi novamente o Sanguessuga ... e ele estava sorrindo.

De Noturno, "Despertar", páginas 133-134.

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